Depois de inventariar todas as obras de Oscar Niemeyer, o
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) parte para uma
nova cruzada da qual começa a obter os primeiros frutos. O Inventário Nacional
de Referências Culturais do Vale do Amanhecer, que a Superintendência do Iphan
no Distrito Federal acaba de lançar, aponta para um novo caminho: o órgão quer
mapear a cultura imaterial da região para propor, no futuro, um registro no
livro dos lugares do Patrimônio Cultural Brasileiro. O Vale do Amanhecer e os
terreiros de Brasília são os primeiros da lista.
Durante dois anos, um grupo de pesquisadores, formado por
antropólogos e historiadores do Iphan, debruçou-se sobre a história e a
organização do Vale do Amanhecer com a intenção de produzir um documento que
servisse como registro detalhado das atividades iniciadas por Tia Neiva nos
anos 1960. Dividido em três capítulos, o livro é o que Alfredo Gastal,
superintendente do Iphan no DF, aponta como uma tentativa de driblar
preconceitos e celebrar a diversidade cultural brasileira. “Ficar só falando da
produção da elite é um pouco de alienação. Uma das funções que temos no Iphan é
não nos atermos a uma religião ou seita específica”, diz. “E queríamos que o
livro fizesse uma avaliação do ponto de vista acadêmico, mas que não fosse
maçante, chato, para que um leigo pudesse entender. Essas manifestações
populares, democráticas e espontâneas merecem ser registradas porque têm um
impacto enorme.”
Segundo a pesquisa, o Vale do Amanhecer é a primeira
manifestação religiosa nascida com a capital e se inscreve numa tradição
mística que ronda Brasília desde antes da construção. No fim do século 19, o
sonho de Dom Bosco anunciou ser esta a terra do leite e do mel. Já o mestre
Yokanaam trouxe para cá sua Cidade Eclética antes de JK iniciar as obras, e o
francês Pierre Weill criou, com anuência do estado, a Universidade Holística na
Cidade da Paz (Unipaz). Mas, quando Neiva decidiu comprar a xácara para nela
instalar a comunidade do Vale do Amanhecer com sua complicada estrutura
hierárquica e doutrina construída com base em referências cristãs, espíritas e
até orientais, ainda não havia por aqui nenhuma manifestação cultural-religiosa
nascida com a cidade. “Entendemos o Vale do Amanhecer como uma espécie de ícone
dessa Brasília mística”, explica o antropólogo Marcelo Reis.
A primeira etapa de pesquisa para o livro se concentrou no
reconhecimento das particularidades culturais da comunidade. Em seguida, a
equipe trabalhou na identificação das referências para depois documentar, com
entrevistas com os membros mais antigos e pioneiros, a memória do vale. Tia
Neiva ganhou um capítulo especial, já que não há como dissociá-la da razão de
ser da comunidade. “Criador e criatura são indistintos. Ela é a grande matriz
fundadora desse universo religioso”, explica Marcelo.
CLARIVIDENTE DE FIBRA
Neiva Zelaya chegou ao Planalto Central em 1957. Viúva,
aceitou o convite do padrinho de casamento, Bernardo Sayão, para ajudar nas
obras de construção da cidade. Neiva já carregava uma bagagem surpreendente.
Perdeu o marido aos 24 anos e, contra a vontade da família, decidiu criar os
três filhos sozinha. Primeiro, montou um Cine Foto e começou a trabalhar como
fotógrafa e laboratorista no interior de Goiás, mas as químicas usadas na
revelação lhe causaram problemas respiratórios e Neiva trocou o comércio por
uma xácara. Cuidou sozinha do cultivo até perceber que o trabalho era pesado
demais. Vendeu a xácara e comprou um caminhão.
Foi como caminhoneira e motorista de ônibus, função que
exerceu por um tempo em Goiânia, que Neiva chegou a Brasília, onde teve as
primeiras visões que a tornaram conhecida como clarividente e a levaram aos
arredores de Planaltina para fundar o Vale do Amanhecer. Durante os anos 1970 e
1980, a doutrina chamou atenção no país e Tia Neiva passou a frequentar a média
com certa assiduidade. Conhecido como local de tratamento espiritual, mas
também de visões e previsões, o Vale atraía olhares e adeptos curiosos. Tia
Neiva recebia políticos e personalidades e costumava ser convidada para
realizar previsões em programas de televisão.
Após sua morte, em 1985, o interesse pelo Vale diminuiu. Com
o crescimento urbano, o que era uma comunidade isolada acabou por se mesclar a
cidades vizinhas e a conviver com outras manifestações religiosas. Hoje, o Vale
divide espaço com templos evangélicos e igrejas católicas. “O inventário é um
grande reconhecimento da nossa relevância”, constata Jairo Zelaya, neto de Tia
Neiva. “Sempre houve uma visão deturpada, carregada de preconceito, e esse
livro traz uma sistematização muitíssimo detalhada do que é o Vale do
Amanhecer. Os trabalhos acadêmicos sempre abordavam um tema circunscrito e esse
trabalho do Iphan é o mais amplo já feito sobre o Vale.”
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