quarta-feira, outubro 20, 2021

Tia Neiva

 

O AMANHECER DAS PRINCESAS NA CACHOEIRA DO JAGUAR

 


 

CAPÍTULO I

 






Salve Deus meu filho Jaguar

         De todos os males, o mais triste é aquele que deixamos em nossas passagens, é a cicatriz do nosso mau comportamento, quando estamos na Terra. Vivemos seguros ao orgulho, principalmente no egoísmo. Muitas vezes sentimos a necessidade de chorar, de sorrir, de amar, ou melhor, pensamos em ser amados, mas nunca desejamos amar incondicionalmente, para melhor atrairmos a nosso favor... Não, pelo contrário: exigimos de alguém o que nos convém, sem querer oferecer nada em troca.

         Salve Deus, meu filho! Vamos sentir a vida das Princesas e melhorar o nosso comportamento com respeito ao amor. Sim, as crioulas Princesas, em 1700, no Brasil Colônia, anunciavam o seu tempo de evolução nas senzalas. A dor do destino cármico de um povo em desenvolvimento. Então, tudo começou a vibrar quando os dois grandes missionários – Pai Zé Pedro e Pai João – resolveram agir no campo vibracional de nossa missão, com esse imenso amor, ouvindo e sentindo o Céu, os poderes de Vô Agripino, que emitia aos mesmos toda a Luz do Santo Evangelho.

         Pai Zé Pedro e Pai João – os conhecidos Enoques de todos os tempos da evolução na Terra – vendo que o Homem persistia no seu orgulho, arrogante, vieram dar fim a este triste poder. Aos 14 anos, Pai Zé Pedro e Pai João, que regulavam em idade, vieram, no mais triste quadro, em um navio negreiro para o Brasil. Eram duas personalidades com idéias transcendentais traçadas no Céu para aqueles dois missionários. Apesar de tudo, eram também dois escravos, obedientes para que pudessem dar o exemplo.

         Salve Deus! Ninguém entenderia também, naquele tempo, que aqueles dois velhos imperadores, dois faraós, que haviam vivido com tanto desamor, tanto orgulho, estivessem sofrendo, daquela maneira, nas garras dos traficantes de escravos.

         Então, aqueles dois espíritos levaram em frente sua obra. Preparados nos planos espirituais, vieram à Terra cumprir sua missão, que seria, em nossa última orientação, a Nova Estrada do Jaguar na Linha do Amanhecer. Vendidos por navios negreiros, vindos da Índia e da África, por Deus se encontraram, pela força de seu compromisso, no sul da Bahia, para onde sua forte e verdadeira mensagem os impulsionava. Então, juntos, desenvolveram as suas faculdades mediúnicas. O senhor de Pai Zé Pedro era um homem muito bondoso, que ouvia o Grande Africano Zé Pedro e amava suas palavras. Chegou a se converter, e comprou o Negro Indiano, que era Pai João, deixando-os fazer, na grande senzala, o que lhes aprouvesse.

         E tudo começou assim: eram seis fazendas reunidas, onde Jurema e Juremá, as gêmeas, eram muito queridas por toda aquela redondeza. Sua graça e beleza demonstravam sua herança transcendental de altezas. Sim, o Homem não se perde – se reencontra! Então, a grandeza dos missionários se fazia projetar por toda aquela região. Todos da redondeza ali se juntavam, em busca da caridade. Ninguém entendia porque, naquela era tão crua, de senhores tão arrogantes, pudesse ser admitida aquela liberdade.

         João pregava a Doutrina, o amor aliviando o chicote dos senhores. Pai Zé Pedro tocava os tambores para alertar seu povo nas outras fazendas vizinhas, onde vivam Iracema, Jandaia, Janara e Iramar, contando, também, com Janaína, pequena sinhazinha que muito amava os Nagôs. Eram jovens, com apenas 18 anos, que sofriam as incompreensões de suas sinhazinhas e as perseguições e seduções dos seus sinhorzinhos. Era uma desdita o que, naquele tempo, sofriam aquelas escravas missionárias. Porém, na senzala de Pai Zé Pedro, tudo ia muito bem! Vinha gente de longe, e as curas se realizavam com tanto amor que se propagou o Africanismo com a sua presença.

         Era o dia de Jurema e Juremá. A Lua surgia no céu, prateada. Os tambores ressoavam. Jurema, em pé na soleira da senzala, vibrava, cheia de amor, esperando Juremá e sua mãe. De repente, um crioulo, que também fazia parte do corpo mediúnico, disse, tremendo de dor:

         - Oh, Jurema, tua mãe não estará conosco. Amamentou a filha da sinhazinha com febre, e a febre passou para a nenenzinha.

         - Cadê mamãe?

         - Tua mãe, Jurema, está no tronco!...

         - Oh! Coitadinha! Ó, meu Deus! – gritou Jurema que, segurando o portal da senzala, sentiu seu espírito se transportar, seguindo até às ruínas de Pompéia.

Jurema, em sua visão, se sentiu uma rica princesa, entre sedas e jóias. Sua irmã e todos aqueles crioulos da senzala, inclusive a negra que, hoje, era sua mãe, ridicularizavam uma jovem escrava, hoje a sinhazinha da senzala. Jurema, compadecida da jovem – que até então era uma visão – se esqueceu da tragédia que, na realidade, estava acontecendo. Não, ela não via sua mãe no tronco, que era a realidade. Via somente a jovem escrava arrastada e ridicularizada, com todos a vaiando, chegando mesmo a machucá-la, e, em meio a esta alucinação, começou a gritar:

- Juremá! Volte com minha mãe!...

         Saiu, então, decidida para o congá. Chegando, contou tudo o que se passou a Pai João, e ele lhe explicou:

 - Filha, não chore, não se desespere. Eu, você, sua mãe e todos os seus irmãos vivíamos na mais rica vida em Pompéia. Eu era Procurador, Zé Pedro era Imperador, e todo esse povão estava lá. Só Deus sabe, minha Jurema, os desatinos, as tragédias que provocamos naquele império. Fizemos a mais terrível escravidão. Hoje, filha querida, Deus nos deu essa oportunidade de pagar todo este mal. Esta pequena sinhazinha é o espírito da jovem escrava de Pompéia.

 - Então, Pai João, como tudo terminou?

Pai João, colocando a mão em sua cabeça, disse:

 - Dorme, filha... Dorme, Jurema...

Deitada com a cabeça no colo de Pai João, Jurema adormeceu, dizendo baixinho:

- Ó, meu fidalgo centurião, como pôde me abandonar neste caminho tão espinhoso? Onde vives, que eu não posso te alcançar? Sim, meu fidalgo, continue acariciando meus cabelos, que ficaram tão longos...

         Nisto, um grito, e ela se levantou, decidida, dizendo:

         - Não voltarei para minha senzala! Vou-me embora daqui...

         Com muito custo conseguiram acalmar Jurema. Os tambores recomeçaram, mas Jurema, pensativa, não saiu do lugar. Pai Zé Pedro iniciou os trabalhos, e veio sentar-se perto de Pai João e Jurema. Jurema segurou em suas pernas. Depois, apoiou novamente sua cabeça na perna de Pai João, não sentindo coragem para se levantar.

- Jurema, minha filha – disse Pai Zé Pedro –, choras pela tua mãe?

- Não, Pai. Choro porque vi e perdi o meu amor... Agripa, o meu amor! Eu o vi acariciar os meus cabelos... – e passando a mão na cabeça, meio sem graça, Jurema continuou – Oh, paizinho Nagô, é tudo tão diferente!...

- Sim, filha, se acalme. Eu vou lhe mostrar onde e como se encontraram.

         - Não, Pai, não quero. Se ele for aquele crioulo feio do Japuacy, não quero. Ele não está aqui como vocês estão, todos nós estamos. Mas ele não pode. Não admito que seja feio como nós.

         Os dois deram uma risada. Preocupado, disse Pai João:

 - Vejam no que dá a clarividência de uma pobre jovem...

Jurema voltou a sentar-se. Pai Zé Pedro e Pai João vibraram, preocupados. O que fazer? Levá-la para a Cachoeira do Jaguar? Deus Todo Poderoso! Só Ele poderá traçar este destino.

         E ali ficaram, esperando a jovem despertar para decidir o seu destino, que tanto se agravara.

 

CAPÍTULO II

 

         Salve Deus, meu filho Jaguar!

         Deus, de fato, toma, cedo ou tarde, o partido dos que se dizem inocentes, porque o cristianismo surgiu, por canais piedosos, numa era difícil.

         Jurema dormia. O dia começava a raiar e os escravos não tinham vontade de sair da senzala. Pai Zé Pedro pediu a Pai João que deixasse Jurema a seus cuidados. Determinaria outros escravos para ajudarem a zelar por ela. Pai João ainda era escravo recente naquela senzala.

         Inesperadamente, o feitor chegou à soleira da senzala, gritando para que cada um tomasse seu rumo. Todos saíram, exceto Pai Zé Pedro, que era protegido do sinhorzinho e gozava de alguma liberdade.

- Quem é essa crioula, Zé Pedro? – perguntou o feitor.

- É Jurema, que desde ontem não quer se levantar. Está sofrendo pela mãe, que está no tronco.

- O quê? – bradou irado o feitor – Quem já viu uma crioula com um mimo desses? Mimo é para a sinhazinha. Vou levantá-la agora mesmo com este chicote!

         E, marchando para a cama de Jurema, fez menção de levantar o chicote. Ouviu-se o grito de Pai Zé Pedro:

- Se arremessar, eu o mato!

E seu grito foi tão grande que se fez ouvir pelas redondezas. O feitor, enfurecido, passou a arremessar o chicote de qualquer jeito, blasfemando horrores e ameaçando ir contar ao senhor de Jurema onde ela estava.

- Não! – gritou Pai Zé Pedro – Não o fará. Os Ferreiras são muito malvados e irão castigá-la. Não o fará!

Então, a senzala de encheu de negros Nagôs, intimidando com sua presença o feitor que, amedrontado, saiu, e foi direto contar ao senhor de Jurema o que se passara. Foi um reboliço. O senhor de Pai Zé Pedro mandou chamá-lo e pediu que contasse o que estava acontecendo. Pai Zé Pedro disse que havia sido por conta da malcriação da pequena crioula.

Reunidos no terreiro, os negros ficaram pensando no que fazer. Logo, chegou o senhor de Jurema, que entrou como um raio e pegou a moça nos braços, furioso.

- Maldita! Tanto a mãe como as filhas são feras, são irresponsáveis, são negras malvadas, imundas – e continuou suas blasfêmias, deixando os Nagôs sem ação.

De repente, ouviu-se um estampido, na serra. Tiros começaram a ecoar e todos correram para ver o que era.

- Afastem-se – gritou o feitor – e peguem as armas. Não deixem que eles desçam até aqui.

Os negros, aproveitando a confusão, abandonavam tudo e fugiam da fazenda. Pai Zé Pedro e Pai João correram para a casa grande, a fim de defender seu senhor.

O ataque prosseguiu. Era um bando de negros fugidos, revoltados contra a escravidão, que se vingavam dos maltratos recebidos atacando e saqueando as fazendas. Matavam as crianças, roubavam animais e levavam o que podiam. Com roupas esfarrapas e fortemente armados, impulsionados pelo ódio, pela revolta, os negros cercaram a casa grande, prontos para o ataque final. Foi quando Pai Zé Pedro apareceu na soleira e gritou:

- Parem! Parem!...

Um silêncio muito grande se seguiu. Os negros, petrificados, estancaram, surpresos pela presença de Pai Zé Pedro.

- Sigam seu destino! – disse Pai Zé Pedro – Levem algumas leitoas, e vão embora.

- Tem alguém no tronco? – gritou um dos assaltantes.

- Não – respondeu Pai Zé Pedro – Aqui não encontrarão nem tronco. O meu senhor é meu filho.

Pai João saiu de trás de uma grande árvore, perto da casa grande. Um crioulo, que estava a cavalo, deu-lhe um tiro, acertando no ombro. Jurema, que havia sido deixada pelo senhor que fugira, apavorado com o ataque, saiu da senzala e correu para socorrer Pai João.

- Queremos o senhor branco – gritavam os negros.

Amparado em Jurema, Pai João disse, com ternura:

- Chega, meus irmãos, chega. O ódio é amigo da fome. Voltem para seus donos. As onças vão lhes comer nestas matas. Deixem de ódio! – com a voz entrecortada pela dor, Pai João continuou – Vamos, desçam! Eu não tenho medo de vocês... Deixem de ódio!

- Vamos descer – disse um velho africano e, num instante, todos estavam no terreiro, reunidos em volta de Pai Zé Pedro, como que preparados para ouvir o que ele tinha para lhes falar.

Pai Zé Pedro perguntou as razões da fuga, o porquê de estarem fugidos. O velho africano contou a história:

- Éramos trinta, entre homens, mulheres e crianças. O nosso sinhorzinho entregou-nos para o feitor, e todos os dia morria nêgo de tanto apanhar. Então, resolvemos sair matando, até encontrar sossego.

- De onde vocês vêm? – perguntou Pai Zé Pedro.

- Viemos da Fazenda Esperança, no Engenho Velho.

- Como? O Engenho Velho fica muito longe daqui. Meu Deus! – exclamou penalizado Pai Zé Pedro.

Os negros pareciam enfeitiçados com Pai Zé Pedro. Disseram:

- Vamos ficar aqui, se o senhor deixar. Obedeceremos e não vamos aborrecer ninguém.

- Ó, meu Deus! – gemeu Pai Zé Pedro – Já temos muitos negros por aqui!

Uma crioula, aparentando uns trinta anos, saiu do grupo e falou:

- Sei tecer o fio, desde que me dê o algodão. Posso ser útil.

Aproximaram-se oito crioulas, com idades entre 18 e 35 anos, e alguns negros, também jovens, ansiosos pela resposta de Pai Zé Pedro.

- Chame o seu senhor – falou um negro, chamado Jerônimo, que parecia ser o líder do grupo.

O senhor saiu para a varanda. Os negros se ajoelharam e pediram perdão. Muitos choravam como crianças. Eram almas em busca de Luz, mariposas encandeadas pela luz. O senhor concordou com que ficassem. Foi uma grande alegria. Os nagôs foram se acomodando na senzala e Pai Zé Pedro, preocupado, decidiu ver aquele quadro. Cochilou, e entro em transe. Viu que aqueles negros eram um grupo de velhos e tradicionais centuriões da antiga e distante Roma. Viu, também, Pai Seta Branca, que lhe falou:

- Calma! Calma, José Pedro. Estes centuriões, que hoje são negros, estão sob a tua tutela. Foram seus algozes e, entre eles, estão também Messalina, Policena, Emeritiana – sim, a tua Emeritiana – hoje na figura de Zefa. Salve Deus, José Pedro! Amor, tolerância e humildade! – e, a seguir, Pai Seta Branca desapareceu.

Pai Zé Pedro despertou com o barulho dos negros. Pensou:

- Sim, e João, o quê vai pensar?  Como irá entender isso? Ó, meu Deus, como me libertarei?

Nisso, Jurema vem correndo a seu encontro, falando:

- Pai Zé Pedro! Pai João! Eu vi um índio muito lindo, que me falou sobre estes negros. Eles são dos nossos, e vieram para nos salvar do meu sinhorzinho.

Pai João deu uma risada e disse:

- Salve Deus! Eu não o vi, mas senti tudo o que se passou. Jurema, tu és minha filha. Eu e tua mãe somos dois amores.

Os três se abraçavam, comovidos, quando ouviram a voz do sinhorzinho, dono da fazenda, que chegava.

- Quero também me confraternizar neste abraço. Zé Pedro, você salvou nossas vidas. – e virando-se para Jurema, falou: - Vou comprar você, sua mãe e sua irmã, a Juremá.

Os quatro se abraçaram, com as cabeças juntas e em um só coração. Combinaram de fazer uma grande festa no congá. A notícia alegrou os negros, que começaram a bater os pés e palmas, cantando em linguagem Nagô. Olhando-os – os velhos Jaguares, ou negros, ou centuriões – Pai Zé Pedro sussurrou para Pai João:

- Ó, meu Deus! Emeritiana está ali, e Anetra também! O que será de nós, João?

Pai João, segurando o ombro ferido, respondeu:

- Onde está o amor, está a compreensão!

A noite chegou e encontrou os negros em grandes preparativos. Os que haviam fugido na hora do ataque já tinham voltado e trabalhavam com os que haviam chegado, que pareciam bem disciplinados. Todos, alegres, preparavam a grande festa do congá. De repente, um grito. Era Iramar que chegava, esbaforida, trazendo a notícia:

- O povo da fazenda dos Ferreiras está preparando o cerco da fazenda, para atacar os negros e levar Jurema de volta!

         Estabeleceu-se a confusão. O pânico voltava a reinar na senzala, quando Pai Zé Pedro, mais uma vez, assumiu o comando da situação, dizendo:

         - Salve Deus! Fiquem calmos e vamos resolver o que fazer.

         Os negros se aquietaram e se chegaram a Pai Zé Pedro.

 

CAPÍTULO III

 

         Salve Deus, meu filho Jaguar! Não estamos preocupados com velhos documentos das velhas escrituras. Estamos, sim, desejosos de saber onde os nossos antepassados encontraram tanta força e tanta coragem para chegar até aqui. Sim, meus filhos, o missionário tem, graças a Deus, a sua energia e toda harmonia nos três reinos de sua natureza. Muitas vezes, contando, até pensamos ser irreal o que nos dizem sobre os escravos e seus missionários.

         Como foi visto, a festa do congá foi interrompida pelo ataque dos Ferreiras. Pai Zé Pedro tentou segurar os negros no congá mas, quando deu conta, os mais jovens já haviam saído e enfrentavam os atacantes. Logo haviam dominado a situação e Pai Zé Pedro viu, surpreso, os negros atacarem os Ferreiras e seu grupo, açoitando-os entre pragas e gemidos. Foi quando descobriram o feitor, corpulento e furioso, que avisara aos Ferreiras a presença de Jurema na fazenda. Atacaram-no com violência.

         - Sou o feitor desta fazenda! – gritou ele, tentando intimidar os atacantes. Mas, em vão. Pegaram-no e o golpearam por todo o corpo, enquanto ele gritava: Esses nagôs estão me assassinando! Socorro!

         Quando os negros o deixaram, urrava de dor, inerte no chão. Pai Zé Pedro se aproximou do feitor e viu que o homem estava com a coluna atingida, não havendo chance de se recuperar. Estava aleijado para sempre!

         - Ó, meu Deus! – exclamou Pai Zé Pedro – Como poderemos resgatar tal dívida com este pobre irmão?

         Alguém que estava ao lado falou:

         - Ora, Pai Zé Pedro, acho muito bom que ele nunca mais caminhe para chicotear nossos irmãos!...

         - Meu Deus! Meu Deus! – Pai Zé Pedro dizia, andando de um lado para outro – Ó, meu Deus! Este homem que nunca mais vai andar!...

         Pai Zé Pedro andou mais um pouco e se deparou com um triste quadro: Ifigênia, uma jovem negra, filha de Júlia, uma paralítica, estava caída, com o crânio aberto por pancadas. Foi buscar o sinhorzinho, para que visse o resultado da luta. Alguns homens haviam morrido, mas nenhum dos Ferreiras fora seriamente ferido, e tinham fugido. Só restara o feitor, caído e gemendo de dor.

         O Sol já começava a clarear o horizonte quando os negros se reuniram no terreiro, em volta de Pai Zé Pedro. Eram quarenta nagôs. Um, que ainda não havia se manifestado, saudou:

         - Salve Deus! – e incorporou Pai Jerônimo, falando com Pai Zé Pedro: - Eles vão voltar para vingar a humilhação. Não podem mais ficar aqui. Levanta acampamento! Leva Jurema e Juremá, recolhe teu povo e segue, rumo à Cachoeira do Jaguar, que desemboca nas águas grandes do mar. Nós vamos ficar, e seguiremos depois, quando tivermos libertado a desditosa mãe destas gêmeas – e apontou para Jurema e Juremá.

- Não, eu não permitirei – gritou Pai Zé Pedro.

         - Como? – disse Pai Jerônimo – Como se atreve a duvidar de teu irmão? Vão embora, que eu a levarei. Se demorarem a partir, haverá mais mortes. Vamos, vamos logo! – e Pai Jerônimo desincorporou

         Pai Zé Pedro e Pai João decidiram acatar o aviso. Rapidamente, todos juntaram as coisas que podiam levar e se despediram do sinhorzinho e da sinhazinha, com amor. O feitor, por ordem de Pai Zé Pedro, que não queria abandoná-lo à própria sorte, foi acomodado em uma padiola de varas. Alguns crioulos ficaram na fazenda para ajudar a enterrar os mortos. O sinhorzinho também arrumou suas coisas, juntou a família, e se preparou para mudar da fazenda, indo para a cidade onde viviam seus pais.

         Os negros já estavam marchando quando ouviram, ao longe, um tiro de clavinote. Pouco mais à frente foram alcançados pelos nagôs que haviam ido buscar a mãe de Jurema e Juremá.

         Eram 108 negros os que chegaram, após longa caminhada, à Cachoeira do Jaguar. A noite ia alta, mas a Lua cheia clareava tudo. Podiam ver a mata, com suas palmeiras balançando suas folhas, como em uma prece, a areia branca e o mar prateado pelo luar. Pai Zé Pedro, sentado em uma pedra, descortinava todo o quadro por onde teria que passar com aquela gente. Pai João se aproximou e disse, olhando a maravilhosa paisagem:

         - Sim, tudo pela condenação da matéria! A terra... A terra... Tão lindo o mar e, no entanto, a terra é o que nos pertence, por ser a parte sólida deste planeta. Porém, o que me conforta é que as forças cósmicas continuam em atividade, porque, neste Universo, não há inércia. Tudo se movimenta em nosso favor, pela bênção de Deus! A Sua atividade é, essencialmente, produtora desta nossa matéria orgânica e inorgânica. Logo nos dará forças, graças a Deus!

         Pai Zé Pedro sorriu, ouvindo-o, e perguntou:

         - Onde aprendeste tanto? Estas não são palavra de Nagô...

         - Estou tentando consolar a mim mesmo, Zé Pedro. Por que não pede ao Mestre Agripino? É ele quem me consola.

         Foi quando os dois começaram a sentir a energia que chegava.

         - Sim, Zé Pedro, a atividade do Homem é essencialmente produtora e as forças essencialmente ativas. Como já disse, cria na matéria orgânica este arsenal de forças. Portanto, temos que organizar um ritual, uma jornada, vestimentas que mudem a sintonia dos crioulos. Sim, Zé Pedro, vamos erguer esta arma para o Céu!

         - Sim, João, é realmente um arsenal. Ó, meu Deus!...

         Olharam a paisagem tranqüila. Pai João voltou a falar:

         - Faremos uma jornada em frente à cachoeira. Arranjaremos penas e enfeitaremos as crioulas, que ficarão como lindas princesas dos castelos encantados de que já ouvi falar.

         - E eu, que pensei que você, meu irmão, era um simples escravo!...

         - Sim, – disse Pai João – tenho Vô Agripino que vem nos meus sonhos e me conta tudo.

         - Eu também tenho um índio que me falava quando eu ia entrar no chicote do feitor – falou Pai Zé Pedro, rindo.

         Então, lembraram-se do feitor paralítico que haviam trazido.

         - Meu Deus! O que vamos fazer com esse pobre homem?

         Mas foram interrompidos por um grito que rompeu a calma. Era Jerônimo que gritava, como se estivesse sendo perseguido.

         - Ó, meu Deus! – exclamou Pai João – Nossa vida não tem fim...

         Continuaram a sorrir.

         - Sim, João, e o ritual?

         - Faremos. Precisamos de energia para obter curas desobsessivas. Salve Deus! Faremos tudo como Deus determinar.

         Os crioulos vinham em busca dos dois, enquanto os gritos continuavam.

 

CAPÍTULO IV

 

         Salve Deus, meu filho Jaguar!

         O dever é obrigação moral da criatura para consigo mesma, em primeiro lugar; em segundo, para com os outros. O dever é a lei da vida! Meu filho, a virtude é o mais alto grau onde o Homem encontra sua liberdade espiritual. A virtude é a forma que sobrevive e explica a Natureza do Homem, porque tudo está contido em Deus. Sempre estamos a percorrer as ruínas de nossas vítimas, das suas vidas, sem preocupação exata da nossa missão. Hoje, meu filho, estamos tentando acreditar no que nos dizem os nossos antepassados,

         A noite da chegada à Cachoeira do Jaguar foi um tumulto de emoções. Alegria e tristezas, risos e choros. Jerônimo chegara aos gritos. A mãe de Jurema e Juremá estava muito mal. Mesmo assim, apesar dos sobressaltos e do cansaço, os negros se acalmaram com as palavras de esperança de Pai Zé Pedro e de Pai João. Conseguiram dormir.

         Quando o dia raiou, todos, animados, começaram a apanhar as folhas das palmeiras e material para construir suas choupanas. Trabalhando felizes, em oito dias haviam construído um lindo povoado. E na melhor sintonia possível, fizeram um formoso congá.

         No dia do grande congá, todos estavam realmente felizes e desejosos de receber a energia maravilhosa de que lhes falara Pai Zé Pedro. Este, juntamente com Pai João e Henrique de Enoque, um dos nagôs que muito se identificara com os dois, foram até a choupana onde Jurema cuidava de sua mãe moribunda.

         Quando entraram na cabana, Jurema ergueu a cabeça e, como se estivesse dormindo, com os olhos cerrados, saudou-os:

- Salve Deus! Seja benvindo a esta terra, meu estimado Procurador. É árdua esta missão que escolhestes, de Nagô. Assim, assumistes a maior das missões. Oh, como me orgulho de ti, meu filho! Orgulho-me de ti! Como em poucos, tenho o mais puro exemplo em ti, meu filho, de agora em diante.

         Jurema abriu os olhos e, um pouco estonteada, voltou para junto de sua mãe. Os três correram para ela, dizendo:

         - Oh, filha, não sabes o bem que nos fizestes!...

         Ela começou a chorar,  e disse:

         - Sim, eu sei. Ouvi tudo o que lhes disse. Apenas não pude me impedir de dizer!...

         Pai Zé Pedro olhou para Pai João e perguntou:

         - Como? Segundo Vô Agripino, ela passou por um processo de incorporação consciente. E quem tomou seu corpo?

         - Os Anjos e Santos Espíritos que prometeram nos proteger nesta jornada. Jurema será a Voz Direta do Céu! – respondeu Pai João.

         Deram graças a Deus e começaram a comentar o que se havia passado. Pai Zé Pedro reconhecera em Henrique o seu velho Procurador romano. Pai Zé Pedro, como Imperador, o havia mandado a Pompéia e, agora, o reconhecera. Não estava tão seguro, até que Jurema fez a confirmação. O reencontro se dera naquele lugar primitivo. Pai João, filosofando, falou:

         - Todos somos livres, neste mundão de Deus! Até mesmo para acreditar, desejar, escolher, fazer e obter. Mas todos somos, também, constrangidos a penetrar nos resultados de nossas próprias obras. Não existe direito sem obrigação e nem equilíbrio sem consciência.

         - Nesse caso, a consciência de Jurema é equilíbrio?

         - Graças a Deus! Por isso me faz tanto bem, Zé Pedro.

         - Sim, João. E a mãe de Jurema irá morrer?

         - Não, Zé Pedro. A doença é apenas o conflito do seu estado externo, falta de energia física. Não precisamos nos preocupar.

         - Aceito sua afirmação, João. Fico feliz e seguro de saber de seus sonhos com Vô Agripino. Seria tão bom se eu também pudesse sonhar com ele. Porém, devemos dar graças a Deus por termos você!

         - Sim, Zé Pedro. Mas ele ralha muito comigo!

         - Sim, João. Também tenho um índio. Eu já lhe disse, não?

         - É verdade, Zé Pedro, é verdade. E quer saber mais? Fui informado que Vô Agripino é o pai espiritual desse seu índio.

         - Êh, João, espera... Vamos devagar...

         Foram interrompidos pelos gritos de alegria de Tomás, que havia visto um pequeno barco que chegava. Nele, vinha para integrar o grupo a sinhazinha Janaína!

         - Vê, – disse Pai Zé Pedro – Jurema bem que nos disse ter visto uma linda loura e um crioulo que chegavam, com belas mantas para as crioulas.

         - Sim, Zé Pedro, mas cuidado. Você está fazendo muitas observações, e isso é muito perigoso. Deixe que as coisas decorram sem muita precisão de sua cabeça.

         Desembarcaram todos, e Janaína parecia que já era esperada por aquela gente. Trouxe muitas mantas e pequenos terços, e mandou colocar sua bagagem na cabana de Jurema. Chegou a Pai Zé Pedro e pediu:

         - Gostaria de viver aqui, se me permitissem.

         - Quer viver aqui, morar conosco? – perguntou Pai João, que pensou: Meu Deus, quantas complicações!...

         - Sim. – respondeu Janaína – Meu pai é dono de engenho e tem grandes negócios na Europa. Não tem tempo para mim. Minha mãe morreu. Sentia-me muito só, até que sonhei que, nesta Cachoeira, alguém me esperava. Assim, vim com Chiquito, para nunca mais voltar. Libertei todos os negros que estavam no tronco, e sei que eles também chegarão até aqui. Agora, que já os encontrei, Chiquito vai voltar. Vai virar o barco e alardear que caí no mar e me afoguei. Todos pensarão que morri, e estarei aqui, em paz.

         Todas as jovens estavam juntas, dando risadas. A euforia com a chegada de Janaína foi tão grande que, naquele dia, não houve sessão no congá.

         A vida ia correndo em calma. Cada um conhecendo melhor os outros e, assim, evoluindo em grande harmonia. Pai Zé Pedro se evoluía, a cada dia, no aprendizado de Pai João. Em vez das sessões no congá, davam preferência às histórias doutrinárias de Pai João. E sempre Vô Agripino se esmerava ao lado de Pai João.

         Em resumo: ali acontecia a Doutrina secreta, mãe das religiões e filosofias, que se reveste de aparências diversas no correr das idades, porém mantendo imutável a sua base em toda parte. Sim, nascida simultaneamente na Índia e no Egito, passando daí para o Ocidente com a onda das emigrações. Assim é que, por toda parte, através da sucessão dos tempos e dos rastros dos povos, afirma-se a existência de um ensino secreto que se encontra idêntico no fundo de todas as grandes concepções religiosas ou filosóficas. Os sábios, os pensadores, os profetas dos templos e dos países mais diversos, nela acham a inspiração, a energia que faz transformar e empreender as grandes coisas que aliviam as almas e equilibram as sociedades.

         Naquela noite, estavam todos sentados diante de uma linda fogueira, atiçada por Pai Joaquim e Mãe Dita. Todos se concentravam nas chamas, enquanto Pai João, cochilando, ia recebendo todas essas coisas, ensinamentos e lições, que iam ficando gravados no fundo de sua alma, junto a uma paz, uma serenidade e uma força moral incomparáveis.

         Todos alegres, nem se lembravam do feitor, que repousava, inerte, na última choupana do povoado. Como com a união se faz a força, são obtidos, geralmente, resultados satisfatórios sobre os encarnados. Todos estavam descontraídos, desprevenidos, alheios aos seus pensamentos e preocupações. Exceto Jurema, que não saía da cabeceira de sua mãe.

         A festa foi interrompida por um triste espetáculo: Jurema, com um pedaço de madeira na mão, surgiu no meio deles, completamente transtornada, gritando e ameaçando a todos, como se fosse o feitor.

         - Negros desgraçados, preguiçosos...

         E, com os olhos fechados, golpeava todos ao seu redor. Gritou para Pai Zé Pedro:

         - Vem, negro desgraçado, vem me matar!...

         Pai Zé Pedro, vendo que ela poderia cair na fogueira, correu para segurá-la. Foi atingido por Jurema, que também golpeou Pai João, que correra para ajudar Pai Zé Pedro. Jurema, completamente fora de si, parecia um animal enraivecido. Pai João, machucado, ajoelhou-se e, erguendo os braços para o Céu, na força do chamado Deus Africano, gemeu como um leão, dizendo:

         - Ó, OBATALÁ! Ó, OBATALÁ! Ó, OBATALÁ! ENTREGO, NESTE INSTANTE, MAIS ESTA OVELHA PARA O TEU REDIL!

         Jurema soltou o porrete e saiu cambaleando, em pranto doloroso. Pai Zé Pedro, enxugando o sangue que lhe corria pelo rosto, chegou-se a ela, acariciando-lhe os cabelos. Jurema, desesperada, fazia-lhe perguntas:

         - Não tens raiva de mim? Não te zangastes?

         - Não, filha! – conseguiu dizer Pai Zé Pedro – Conheço o fenômeno, e tu só me fazes bem!

         Jurema levantou os olhos. Os grandes olhos, rasos de lágrimas, emitiam a Pai Zé Pedro toda a sua ternura. Pai Zé Pedro sentiu todo o amor de sua vida. Naquele momento, os dois percorreram o transcendente e, como por ventura, Jurema viu o famoso Procurador que a cortejava, a quem tanto amava. E enquanto todos estavam empolgados com o fenômeno desencadeado por Pai João, quando fez aquela emissão ou elevação, com toda a força de seus sentimentos, Jurema permaneceu abraçada com Pai Zé Pedro, vivendo a emoção daquele reencontro. Pai João voltou ao seu lugar, e ouviu Vô Agripino, que lhe falou:

         - Salve Deus! Viu, João? Fizestes tudo tão perfeito porque tens constantemente livre o teu Sol Interior. Entregaste-te ao cristianismo, esquecendo-te de ti mesmo. Sim, o ensino é como pétalas de rosa que caem em nossas mentes, enquanto vai orvalhando os três reinos de nossa natureza.

         - E o Centro Coronário, que me ensinastes uma vez?

         - Sim, este guarda as pérolas que levamos para a vida eterna. – e Vô Agripino finalizou: - Não te assustes com Zé Pedro. Não te esqueças que ele tem apenas 40 anos aí na Terra!

         Pai João ficou meio confuso com a advertência. Viu Zé Pedro, que ainda falava com Jurema. Então, pediu que Vô Agripino ainda respondesse a algumas perguntas. Vô Agripino esclareceu Pai João:

         - João, sabes quem tomou o aparelho de Jurema?

         - Não, meu Vô. Quem?

- O feitor!

         - O feitor? Como? Ele morreu?

         - Não. O seu ódio é tão grande que ele se desprende do corpo e faz o que fez.

         - Meu Deus!...

         - Sim, e não poderás dizer nada. Guarda tudo para ti porque essa gente não tem, ainda, capacidade para assimilar tudo isso.

         - Ó, meu Obatalá! Tenho medo... E Zé Pedro?

         - Sim, nem a Zé Pedro. Ele será feliz, pois saberá respeitar o seu grande e imortal amor.

         - E Japuacy?

         - Japuacy? Veja, João...

         Pai João deu uma grande risada.

 

 

 

CAPÍTULO V

 

         Salve Deus! Explica-se a diferença entre a Velha Estrada e o Novo Caminho. A Velha Estrada é cheia de medo, de temor a Deus. A Velha Estrada foi palmilhada por milhares de pessoas, milhares de teorias sempre escritas e nunca praticadas. O Novo Caminho, entretanto, foi traçado pelo suor, pela própria energia de quem o traçou e vive a emitir com tanto amor.

         Vamos sentir o Caminho do Amanhecer, sem superstições nem teorias dos pensadores, e sim pela vivência, na prática, na execução desta Doutrina e de seus fenômenos sensoriais. Vamos senti-lo no respeito à dor alheia, no carinho aos humildes, no afeto das ninfas, no progresso e na compreensão de nossa família. ESTE É O CAMINHO TRAÇADO PARA O HOMEM NA DOUTRINA DO AMANHECER!

         Quem diria que, naquela era distante, os Enoques levassem tão alto esta filosofia, esta Corrente? Sim, Pai João, o mais velho, era quem observava, com mais precisão, o desenrolar das vidas nos carmas. Suas preocupações aumentavam, enquanto Pai Zé Pedro filosofava, reclamando de vez em quando.

         Os dias iam passando normalmente, isto é, sempre com a presença de fenômenos que já se haviam tornado corriqueiros. Só Deus sabia como e onde chegariam! Havia dias alegres, outros menos alegres, porém a vida decorria sempre em harmonia. Até que as forças foram-se materializando e tudo começou a ser mais verdadeiro, mais preciso. Pai João se enebriava com todos aqueles fenômenos e estava sempre à espreita dos mínimos acontecimentos. Refugiava-se sob uma grande árvore e, ali, cochilando, ia recendo suas mensagens.

         Um dia, o arraial estava tranqüilo e Pai João cochilava. Teve a visão de um finíssimo fio magnético entrando em uma das cabanas, e logo o grito de alguém que fora atingido por ele. Era Iracema que, desesperada, rolava, gritando com grande dor na espinha, como se tivesse levado uma pancada. Era um fenômeno mediúnico, puramente espiritual. Pai João correu para a cabana e fez uma elevação. A dor cessou.

         Começou a pensar no que havia visto. Tinha certeza de que aquele fio magnético tivera sua origem na cabana onde estava o feitor. Chamou Pai Zé Pedro e contou-lhe o que ocorrera. Trocaram idéias sobre o fenômeno.

         Jurema, que vinha chegando, foi manifestada por um Caboclo, que se dirigiu aos dois:

         - Meus filhos, tomem cuidado. Este feitor é um instrumento feliz de evolução. O pobre infeliz ainda vive pelas mãos caridosas de Sinhá Sabina. O fenômeno foi visto por vosmicê, João, para que tome cuidado.

         - Como? – perguntou, surpreso, Pai João.

         - Ele vai entrando em transe, mergulhado em seu ódio, e sua alma vingativa pega quem ele mais ama ou odeia.

         - Salve Deus! E eu que pensava que somente os desencarnados atuavam...

         - Sim, – continuou o Caboclo – vocês ainda têm muito que aprender nesta jornada para desenvolvimento, até que passe todo o carma da escravidão.

         - O Homem será feliz quando tiver a libertação! – disse Pai Zé Pedro.

         - NÃO, O HOMEM JAMAIS SE LIBERTARÁ! – falou o Caboclo, e foi desincorporando.

         Todos ficaram perplexos. Jurema, decidida, entendeu que o feitor representava um perigo e correu à cabana dele, dizendo que ia matá-lo. Pai João correu e a deteve:

         - Jurema, a concepção da morte resulta de um entendimento completamente errado da vida porque, na verdade, ela jamais existiu. O espírito não morre. Por isso, se matar o feitor, ele ficará mais leve, mais sutil, e nos atentará mil vezes mais! Todos os que se perdem pelo pensamento e se enchem de ódio, ao desencarnar vão para o astral inferior e, evidentemente, procuram voltar, aumentando suas furiosas crises. Vamos, Jurema, tentar doutriná-lo, antes que morra nesse ódio e se torne invisível aos nossos olhos.

         Chegaram à choupana onde estava o feitor, deitado em uma cama de varas e capim. Sabina correu, sorrindo, ao encontro deles. Esbravejando e praguejando, o feitor começou a ser doutrinado por Pai João. Jurema observava a cena, com seus lindos olhos verdes e amendoados.

         - Pobre Imperador! – dizia Pai João, em transe – Viestes com tão nobre missão e, no entanto, eis o que resta de ti! Pensa, Eufrásio, no que estou te dizendo. Vou levar Jurema, e voltarei.

         O dia já estava terminando quando Pai Zé Pedro e Pai João se encontraram para comentar os acontecimentos. Pai Zé Pedro, deslumbrado, ficava repetindo:

         - A irradiação dos encarnados pode se desprender dos corpos e se manifestar com a mesma leveza do espírito dos mortos!...

         Foram surpreendidos por um grito, e já pensaram em novo fenômeno que pudesse estar ocorrendo. Mas, logo, gargalhadas os acalmaram. Havia sido Pai Zacarias, que caíra na cachoeira e estava todo molhado. Coisas assim aconteciam sempre, mas, por causa da tensão que fora relaxada, foi motivo de brincadeiras e de alegria.

De repente, uma agitação. Um cavaleiro entrou pelo povoado, a galope. Era o feitor da fazenda onde Jurema havia vivido. Dirigiu-se a um grupo de crioulas que, assustadas, gritaram e correram. Vislumbrou Juremá e, num arranco, pegou-a pela cintura, colocando-a na montaria.

Tomás, vendo o que ocorrera, lançou-se à frente do cavalo, tentando detê-lo. Gritou para o feitor:

- Larga a menina, porco imundo. Aqui é diferente!...

- Nem tente me parar, porque vai morrer! – gritou o cavaleiro esporeando o animal e fazendo com que empinasse à frente de Tomás.

O cavalo atingiu, com suas patas, o estômago de Tomás, e saiu galopando para fora do povoado. Quando Pai João e Pai Zé Pedro correram para acudir, Tomás já estava morto. Foi um grande reboliço. Todos corriam e gritavam, no desespero do desastre. A surpresa fora tão grande que, com o impacto da morte de Tomás nem sequer pensaram em perseguir o raptor de Juremá. A tristeza se abateu sobre o povoado. A sintonia dos Nagôs se modificou. Já não cantavam, as risadas eram raras. Só a harmonia continuava.

Começaram a estudar um plano para recuperar Juremá. Pai Zé Pedro andava sem inspiração, muito triste por ter acontecido aquilo com Tomás, que fora praticamente criado por ele. Joaquim e Cassiano, dois Nagôs que muito amavam Pai Zé Pedro, decidiram partir em busca de Juremá. Nada disseram a ninguém e, silenciosamente, prepararam uma matula na mochila e partiram. Jurema os viu, em sua vidência, e Pai João sentiu, também, o que se passava. Mas ficaram calados.

Passou-se algum tempo. Jurema evitava Pai Zé Pedro e Pai João, pois tinha muita revolta pelo acontecido e estava com espírito de vingança pela morte do querido Tomás e pelo rapto da irmã. E os dois crioulos voltaram, trazendo Juremá. Novamente houve alegria no povoado. Correram para receber a jovem, mas uma desagradável surpresa os aguardava: Juremá não falava, perdera a voz!

A noite chegava e, reunidos em torno da fogueira, os Nagôs estavam entregues a seus próprios pensamentos. Ninguém falava, embora estivessem curiosos em saber o que se passara. Somente o crepitar do fogo e o murmúrio das águas na cachoeira eram ouvidos.

Subitamente, Jurema deu uma risada. Janaína se aproximou dela e se abraçaram. Com uma atitude que não era própria dela, Jurema saudou:

- Salve Deus! – e chamando Joaquim e Cassiano, disse-lhes energicamente: - Por que fizeram isso? Mataram o feitor e seu sinhorzinho! Isso não é ação de um filho de Deus que está a caminho... Terão que voltar à Terra. Tu, Joaquim, receberás o feitor como filho. E tu, Cassiano, terás o sinhorzinho também como filho!

Cassiano e Joaquim, que nada haviam contado, sentiram que Jurema sabia de toda a verdade.

- Me perdoe, bom espírito! – disse Joaquim – Porém, aquele malvado matou nosso Tomás covardemente.

- Senti que erramos, mas era tarde... – falou Cassiano – Ó, bom espírito! Será que não poderemos mais viver aqui, com nossa gente, por causa de nosso erro?

- Sim, podem ficar. Deus não tem pressa, Cada um, aqui, assumirá a sua sentença ou a sua libertação. – disse o espírito por Jurema, e desincorporou.

Juremá, enquanto Jurema estivera incorporada, tomava grande cuidado com ela. Viu, aliviada, sua irmã voltar ao normal. Cada um dos Nagôs ficou entregue a suas próprias reflexões sobre o que haviam presenciado. Alguns ficaram ao redor do fogo, outros foram para suas cabanas. Parecia que a calma voltava a reinar, quando gritos de Iracema assustaram todos. Estava sendo atingida novamente pelo fio magnético do feitor. Pai João correu e fez a elevação. Sentiu, porém, maior dificuldade em libertá-la daquela força maligna.

Os dias foram passando, e Iracema ficava, a cada dia, mais pálida e fraca, com ar doentio, preocupando todos. Pai João resolveu convocar uma sessão especial para ajudar a jovem crioula. Dela participou Vovó Cambina da Bahia, que fora chamada para tirar quebrantos dos filhos da Sinhá, e os acompanhara naquela jornada. Vovó Cambina rezou Iracema que, após o passe magnético, começou a apresentar melhoras. A partir disso, Iracema, à medida em que se ia fortalecendo, ia adquirindo forças para repelir o magnético do feitor.

Com o passar do tempo, o povo já esquecera a tragédia de Tomás e passara a se preocupar com a ameaça da força do feitor. Urgia fazê-lo amigo antes que os atingisse, Pai João explicara que, se conseguissem doutrinar o feitor, ele cessaria seus ataques com o fio magnético. E a dedicação foi tão grande que, após receber muitas visitas e expressões de simpatia, o feitor foi melhorando e chegou, mesmo, a pedir perdão aos negros que haviam sofrido seus castigos. Eufrásio já se abria mais, contando até como chegara a ser feitor naquela fazenda. Havia sido um grande senhor, com muito dinheiro e propriedades, mas perdera tudo no jogo. Pobre, abandonado pela família, só lhe restara aceitar a odiosa ocupação de feitor.

Mais uma vez, a prova de que o Homem só se liberta por si mesmo!

E assim, enquanto recebia a Doutrina de Pai João e de Pai Zé Pedro, Eufrásio ensinava o que sabia dos lugares por onde andara. Vovó Cambina da Bahia rezava o feitor todos os dias. Com a ameaça afastada, a vida no arraial começou a se tornar alegre. Cantos, risos, a animação voltou a se manifestar, principalmente ao redor da fogueira.

Às vezes, algum sobressalto, como no dia em que ouviram um grande alvoroço na mata, como se fosse um estouro de boiada. Era uma vara de porcos selvagens, e os Nagôs, com suas espingardas, conseguiram uma boa provisão de carne e impediram que causassem danos ao arraial.

Pai Juvêncio e Zefa eram os únicos que tinham coragem de se aventurar até um lugarejo próximo, chamado Abóbora. Certo dia, quando chegavam na entrada desse povoado, depararam com uma mulher que levava, nos braços, uma meninazinha meio desacordada. A mulher, desesperada, não sabia o que fazer. Então, Pai Juvêncio cochichou no ouvido de Zefa, que concordou com ele: era um caso puramente espiritual, o da menina.

- Calma, senhora! – falou brandamente Pai Juvêncio – Se quiser, podemos ajudá-la. Temos prática desses casos.

A mulher concordou, e os dois Nagôs benzeram a menina, que logo saiu daquele estado de inconsciência e ficou normal. Estava livre da influência espiritual que a perturbava. Tânia, a mãe da menina, feliz e agradecida, deu algumas frutas a eles, pedindo desculpas por nada mais ter para lhes oferecer. Pai Juvêncio e Zefa aceitaram as frutas e as comeram. Foram tratar dos assuntos que os haviam levado ao povoado e, depois, voltaram ao arraial.

         Ao chegarem na Cachoeira, nem sequer haviam posto o pé em casa quando foram acometidos por violentas dores em suas barrigas. A dor era tão intensa que resolveram pedir ajuda a Vovó Cambina da Bahia. Mas de nada valeu. O dia acabou e os dois pensavam que iam morrer. A dor estava forte e a desinteria parecia que não ia parar. Estariam envenenados?

         - Pobrezinhos! – dizia Pai João – Resolveram tantas coisas para nós nessa viagem. Deve ser alguma provação, deve ser Deus testando seus corações...

         Ao redor da fogueira, todos queriam saber notícias. Pai Juvêncio e Zefa estavam também ali, procurando conforto junto à sua gente. Foi quando Jurema, incorporando, levantou-se bruscamente do lado de Pai Zé Pedro e disse, apontando para os dois:

         - Eles comeram prenda ganha pela sua caridade! Por isso, estão sofrendo.

         - Como? – exclamou Pai João, surpreso.

         - Pena Branca não quer que se ganhe alguma coisa em troca do bem que se faz. Como Vô Agripino já ensinou, a gente só aprende com o espinho fincado na carne. É, Pai João, cada um de nós tem um espinho na carne...

         - Ó, meu Deus! – exclamaram todos – Sim, estamos conscientes disso.

         Vovó Cambina chegou com uma cuia de chá para os dois doentes e, só então, eles contaram à sua gente o que se havia passado com a menina quando chegaram a Abóbora. Esclarecida a causa do mal, todos se abraçaram com os dois e entoaram um coro, troçando deles:

         - Juvêncio e Zefa comeram prenda da caridade que fizeram. Sim, receberam pagamento e Pena Branca não admite presentes ou que se cobre pelo bem que é feito...

         Zefa e Juvêncio ainda passaram três dias com dores.

         Eufrásio, o feitor, que se tornara como que um conselheiro do grupo, achou o acontecimento muito proveitoso. Primeiro, pela lição de Pena Branca e, segundo, pela precisão da vidência de Jurema. O pobre casal fora lesado pelas suas mentes preguiçosas.

         O tempo passava, e a inquietação começou a tomar conta do grupo.

         - O que será de nós? – perguntava Pai Zé Pedro – Para onde iremos? Não seria melhor sairmos e enfrentar o mundo, em lugar de esperar que o mundo se chegue até nós?

         - Zé Pedro, – dizia Pai João – quando o celeiro está pronto, o Mestre aparece. São palavras de Vô Agripino.

         Pai Zé Pedro, Pai Lourenço, Pai Francisco e muitos outros dos setenta membros daquele grupo estavam inquietos. Somente Pai João e Eufrásio, firmes na revelação de Vô Agripino, permaneciam calmos. Já faziam dois anos que haviam chegado à Cachoeira do Jaguar. Estava tudo preparado no plano espiritual.

         Certa manhã, Jurema, incorporada, avisou a Pai João que muita gente chegaria, buscando a cura. Os Nagôs começaram os preparativos para recebê-los. Um dia, o aviso soou:

         - Lá vêm eles! Lá vêm eles!...

         E viram um grande grupo que chegava pela estrada. Todos correram para receber os visitantes. Havia grande expectativa. Zefa e Juvêncio reconheceram, entre eles, a mulher com a menina que haviam atendido na entrada de Abóbora. Zefa gritou:

- Jurema! Pai João! Pai Zé Pedro! É gente que vem em busca da caridade! – e perguntou baixinho a Pai João: - Não tem perigo da gente ter dor de barriga?

         - Não. – respondeu, sorrindo, Pai João – Todos aprenderam a lição!

         As pessoas chegavam e eram atendidas com muita alegria e amor. Todos estavam felizes. A felicidade dos missionários de Deus! E foram acontecendo os fenômenos, as curas desobsessivas, e tudo transcorreu na mais perfeita ordem, com muito amor e humildade.

 

CAPÍTULO VI

 

         Salve Deus! As trevas da noite nada significam para o espírito, pois este vê através do seu resplendor. Sim, meu filho, declaro, com toda confiança, que não está longe o dia em que a Ciência irá se colocar diante desta realidade que é a reencarnação. Ninguém poderá impedir o progresso. O mundo de hoje está brincando com fogo. O tempo, no espaço, não se registra. Não se sabe, porém, os caminhos físicos. No centro nervoso da Terra, tudo é lento, tudo vibra para formar a harmonia no centro eterno do Homem. Seus rápidos contatos com o etereomagnético é o bem que lhes dá força. O Homem, mesmo na sua inconsciência, confirma o seu penhor no eterno e junto aos seus velhos sábio retorna ao seu Sol Interior.

         Sim, meu filho, breve irão chegar os dias em que o Homem espiritualizado será sentido pelo profano como uma música literária da mais alta sinfonia.

         Sim, meu filho, segundo as leis e forças que governam todas as coisas que Deus criou, o Homem, na totalidade, sempre procura empregar sua força mais para impedir o desenvolvimento da Terra. Vê-se, assim, que vive como a se punir pelas suas próprias leis. Leis sempre para punir outros. Não sabem se desviar, e continuam a punir.

         Sim, meu filho, não é fácil abandonar a multidão. Fixar-se em si para buscar a verdade é mais difícil, ainda, do que permanecer com ela, permanecer com a verdade quando a encontramos.

         Sim, meu filho, com este espírito de lealdade, vamos encontrar o nosso povo na Cachoeira do Jaguar.

         Foi tudo bem naquele primeiro dia de atendimento ao povo que chegara. Curas, muitas curas, que se espalharam por toda a parte. Luzes, de longe, se viam naquela Cachoeira. Os trabalhos continuaram noite a dentro, e já estavam todos cansados, naquela vida arrastada pelos compromissos cármicos.

         Pai João amanheceu doente. Seis horas da manhã e o céu não havia clareado ainda, fazendo os pensamentos se encontrarem. Eufrásio entoava um “bendito” da Igreja católica. Jurema juntou a roupa e desceu, com uma enorme trouxa, para a fonte. Junto com ela foram Janaína, Jandaia e Jandara. Alguns Nagôs já retornavam das caçadas enquanto outros se dirigiam para as roças. As sinhás preparavam uma feijoada e outras crioulas reativavam o fogo da célebre fogueira.

         Pai João sentia a tristeza daquela gente e, em sua mente, começou a voltar. Pai Zé Pedro chegou, fazendo algumas premonições. Previa também alguma dor devida ao procedimento daquela gente em ações pretéritas.

         Haviam sentido que uma certa desarmonia começava a crescer entre os Nagôs! Era uma coisa recente, e Vô Agripino comunicara que ela era produzida pelas vibrações dos familiares de Janaína e que eles acabariam por descobrir seu paradeiro. Evidentemente, haveria uma batalha. Perder Janaína seria um terrível descontrole para Jurema.

         Suas confabulações foram cortadas inesperadamente. Da entrada da aldeia, três cavaleiros desconhecidos gritaram:

 - Negros! Viemos em paz! Só queremos que nos entreguem sinhazinha Janaína, que sabemos estar aqui. O pai dela pediu a cabeça de todos vocês, que roubaram a sinhazinha sua filha. Só queremos levá-la e não haverá vingança.

         - Ela não se encontra aqui! – gritou Jurema, aflita.

         Janaína, que procurava se esconder, deu uma corrida e entrou na choupana de Eufrásio, apavorada. Mas, foi vista pelos cavaleiros, que correram em sua perseguição.

         Eufrásio, que acompanhava a cena, pegou o clavinote que trazia sempre à mão, para o caso de aparecer alguma onça ou lobo, e atirou nos atacantes. Atingiu, primeiro, o que já estava pegando Janaína e, logo depois, o mais próximo. O terceiro cavaleiro, correndo amedrontado, enveredou pela mata, fugindo.

         Pai João mandou que desarreassem os cavalos e os juntassem na tropa. Correu para a choupana de Eufrásio, que fizera um esforço excessivo para suas precárias condições físicas. Todos acorreram para a cabana, onde Eufrásio, desesperado, falava a Pai João e a Pai Zé Pedro:

         - Ó, Pai João! Jamais pude pensar em tão criminoso gesto. Sim, Pai Zé Pedro, eu não podia deixar que aqueles miseráveis pusessem as mãos nessa criaturinha!...

         Um dos atacantes estava morto. O outro, muito ferido, urrava de dor. Ficaram sem saber como agir, mas resolveram cuidar do ferido. Prevaleceu a lei do amor!

         Enquanto tinham sua atenção voltada para o ferido, deixaram Eufrásio sozinho. Então, os gritos do feitor fizeram todos correr de volta à cabana dele. Surpreenderam-se com Eufrásio sentado na cama, gritando e chorando de alegria, que disse:

         - Veja, Pai João, Deus se compadeceu de mim! Veja! Estou me movimentando... Ó, meu Pai Zé Pedro! Graças a Deus, parece que vou ficar curado!

         A emoção invadiu todos os corações. Com as mãos apoiadas em Pai João e em Pai Zé Pedro, Eufrásio levantou-se e começou a ensaiar um passo. As lágrimas brotaram nos olhos de todos. Exclamavam:

         - Ó, meu Deus! Eufrásio vai andar... Eufrásio vai andar...

         Gritos de emoção, abraços. Foi uma explosão de alegria ver o feitor dar alguns passos.

         Mas, havia o homem ferido, que precisava de atenção. Maria Conga e Vovó Sabina foram cuidar dele. Alguns Nagôs foram enterrar o morto enquanto outros ajudaram a transportar o ferido para uma choupana. O ferido, que pensava que ia ser morto, emocionou-se com toda aquela ajuda. Falou que se chamava Amâncio. O que morrera era Creso. Estavam agindo por conta própria, e ninguém os havia mandado ali. Sabiam da existência de Janaína e armaram o plano para pegá-la e levá-la de volta para casa, cobrando uma boa soma do pai dela. Eram os velhos reajustes naquela noite fatal na senzala.

         Pai Zé Pedro estava em conflito e chegou-se a Pai João:

         - Como pode? Eufrásio matou e ficou curado! Como pode, João, um fenômeno desses?

         - Cala-te, Zé Pedro. Deixe de fazer julgamento. Esses três homens não são nem eram mandados pelo pai de Janaína. Estavam, sim, com más intenções na pobrezinha dessa virgem. Olha, Zé Pedro, já estamos aqui há mais de cinco anos. Não está lembrado que o sinhorzinho Erics vendeu tudo o que tinha e foi embora, pensando que sua filha havia morrido afogada? Surgiu até a lenda que a nossa Janaína parecia cantando, por cima das águas, nas noites de Lua cheia. De um ano para cá, com o movimento de pessoas que vieram aqui, alguém começou a desconfiar que a menina estava conosco. Confiança, Zé Pedro, nas coisas de Deus. Estamos em um maremoto, porém para um nada. É confuso tudo isso...

         - Ó, João! Graças a Deus! Não sabes o bem que me fizeste.

         Pai João mandou um recado para o antigo sinhorzinho, que se encarregou de arrumar a situação, legalizando, inclusive, toda a papelada junto ao pequeno arraial de Abóbora.

         Eufrásio ficou realmente curado. Mas aquela força que possuía antes, que o impelira para uma caminhada firme, parecia ter-se acabado. Impaciente, com freqüente mau-humor, já não queria ficar no povoado. Falava em procurar a família, em partir. E, o que era pior, estava apaixonado por Iracema! Em tudo colocava amargura. Era outro homem.

         Numa noite, Pai João e Pai Zé Pedro se afastaram um pouco, para meditar sobre os acontecimentos. A Lua cheia dava aquela tranqüilidade luminosa e a fogueira estava reduzida a um imenso braseiro.

         - É possível, João, alguém regredir tão depressa? – perguntou Pai Zé Pedro referindo-se a Eufrásio.

         - Sim, Zé Pedro. Naquele acontecimento trágico, muita experiência Deus nos deu, à luz do saber. Pelo que sei pelos meus contatos com Vô Agripino, Eufrásio é somente um instrumento de nossa evolução. E me disse mais: que eu nunca me iludisse com seu comportamento e nem tampouco com a sua evolução. Realmente, tudo é bem compreensível, pois o Homem não se evolui em tão pouco tempo.

         - Ó, meu Deus! Começo a compreender o que estamos passando...

         Foram interrompidos pela chegada de Eufrásio, que falou:

         - Pai João, vou-me embora. Não estou mais suportando esta vida! Vou sair, procurar emprego onde chegar. Darei notícias. Jamais irei me esquecer de todos aqui, e muito menos de vocês dois.

         - E quando pensa em partir? – perguntou, espantado, Pai Zé Pedro.

         - Agora mesmo, e sem muitas despedidas.

         Foram até onde estava o animal do homem que fora morto. Eufrásio, sem nada mais dizer, montou e foi embora, ficando Pai João, Pai Zé Pedro e alguns Nagôs olhando, perplexos, seu vulto, iluminado pelo luar, cavalgando para longe.

         Foram para junto da fogueira. Sentaram-se, pensativos. Jurema, virando-se para Pai Zé Pedro, disse:

- Tenho pena de vosmicê – e foi incorporando: - Salve Deus! (era Vô Agripino) Meus filhos, Eufrásio foi embora, Cumpriu seu tempo com vocês. Mas não se preocupem, porque não irá muito longe. Fez grandes dívidas nesses arredores. Já pagou sua dívida para com Janaína, mas vai reencontrar sua família ali em Abóbora.

         - Em Abóbora? – perguntou Pai João – Eles aí, tão pertinho...

         - Sim! Porém, ele partiu sem saber. E vocês devem estar preparados porque também terão que partir daqui.

         - Como? Ir embora daqui, da nossa Cachoeira?

         - Sim. Vocês irão para bem longe. Jurema, Janaína, Iracema, Juremá, Janara, Iramar, Jazaíra e Jaiza precisam se casar. Esta aldeia não tem mais energia para vocês. Logo chegará a ordem para partirem!...

         Vô Agripino desincorporou e a tristeza se abateu sobre o grupo. Sim, era preciso obter a energia transcendental, herança que se encaminha na Lei do Auxílio.

         Na época, viviam ali no povoado 108 personagens. Era uma família, e a saída de Eufrásio servira para uni-la mais. E unidos aguardavam o destino que Deus lhes daria,

         A princípio tristes com a saída de Eufrásio, estavam reunidos, calados, em volta da fogueira. Pai João preocupado, com o coração doído, falou:

         - Meus filhos! O Homem não vive com o coração dilacerado pela desilusão. Não fiquem assim compungidos pela saída de Eufrásio.

         - Eufrásio era tão bom, nos dava tantos conselhos... – replicaram alguns – Ele era um homem muito bom.

         Pai João começou a pensar que, quando o Homem se esquece das faltas do outro, é porque está evoluindo. Naquele caso, todos só se lembravam de Eufrásio em sua boa fase. Nem se preocupavam com Iracema, a crioulinha indefesa, que ele muito fez sofrer.

         - Zé Pedro, – disse Pai João – estes são, realmente, os velhos reis e imperadores!

         - Por que, João, afirmas isso com tanta euforia?

         - Porque, Zé Pedro, o Homem que viveu em encarnação superior, isto é, de procedência refinada, não perde a confiança em si mesmo. Sempre preocupado com o espírito de Justiça, não se envolve com mesquinharias. Somos 108, sabe? Todos reis e rainhas. E ainda vamos conviver juntos por muito tempo!

         - Deveras? Eles só se lembram de Eufrásio em suas boas ações e de seu martírio na cama.

         Jurema começou a fazer previsões. Apontou para Iracema e disse:

         - Iracema, você voltará para ser esposa de Petrucio. Sim, seguirá para muito longe. Iracema e Iramar atravessarão o espaço para receber a missão e, depois, voltarão como esposas do mesmo imperador.

         - Eu? – exclamou Iracema, assustada – Esposa de imperador?

         - Sim, – continuou Jurema – cujo imperador será Eufrásio que, neste instante, já se prepara para partir, rumo à sua missão.

         O silêncio ficou pesado. Pai João perguntou:

         - Como irão casar as duas com o mesmo homem?

         - Sim. Uma morrerá e Iramar se casará por último. Depois, todos nós partiremos de lá e iremos para outro lugar, aqui perto.

         Foi uma noite inquieta, de frustrações e sonhos pesados.

         Continuaram a viver, acostumando-se coma ausência de Eufrásio. Reinava, então, um suspense. Sempre haviam sustos, reparações doutrinárias, uma harmonia quase de medo. Certo dia, Pai João se acercou da fogueira e começou a falar:

         - Vejam, meus filhos, como a Lei segura o Homem. Vê-se, assim, como o Homem pode ser punido pelas próprias leis que estabelece, sem se desviar delas. São as leis feitas pelos Homens, que punem. Os poderes superiores podem proteger o Homem das forças negativas, que causam doenças e sofrimentos. Porém, o pedido de proteção, segurança contida de paz, harmonia do nosso todo, isto é somente na LEI DO AUXÍLIO. Fazendo a caridade é que abatemos na lei do nosso carma. O sofrimento de hoje é a luz do amanhã. Individualizamos a vida e, no entanto, somos guiados por Deus. Há muitos séculos, o Homem tentou criar e fez a força cega em si mesmo, dirigida pelo chefe das almas.

         Pai Zé Pedro ouvia, atento, remoendo, em seu canto, a falta e a transformação de Eufrásio. Perguntou:

         - João, o que é Deus? Não é dado ao Homem conhecer Deus, que, por si mesmo, deve compreender? Sabemos que um Homem está com Deus pelo seu procedimento. Por que regride o Homem? Eufrásio estava em Deus. Como pôde cair tão repentinamente?

         - Sim, Zé Pedro, cuidado com a tua força de pensar. Você é um nego velho para o chicote mas não para julgar com tanta convicção!

         Os dois começaram a rir, e João disse, com amor:

         - Sim, Zé Pedro. Ouça bem o que diz Vô Agripino: Deus é absolutamente fé, é absolutamente razão. E ser a razão é a Ciência. A Ciência é a razão. Eufrásio não estava com Deus. Deus tentava penetrar apenas em seu coração, como tocou no nosso, naquela noite.

         - Como? – falou Pai Zé Pedro – Eufrásio assumindo com ele mesmo os seus desatinos. Tudo perdido!...

         - Não, Zé Pedro, nada se perdeu. Pelo contrário, Eufrásio saiu para cumprir seu destino. Deus não lhe daria o perdão de suas faltas por aquele curto tempo em que esteve paralítico aqui na cabana. Espancou muitos homens. Foi o causador da noite trágica. Quantas mortes em seu nome? Tudo o que aconteceu foi a bem do seu espírito. Não se esqueça do que disse o Caboclo Pena Branca: breve, muito breve, iremos nos encontrar. Salve Deus!

         - É, João, na verdade um Homem não tem capacidade para julgar outro!

         Os dois começaram a sorrir, achando graça do que haviam falado e que tanto bem lhes fizera. Tudo vinha de Vô Agripino para Pai João.

         Estavam felizes agora. Recordavam suas vidas passadas e o porquê daquela escravidão. A felicidade, porém, durou pouco. Como que por encanto, um temporal – quase um furacão – se abateu sobre a aldeia. O mar crescia, rugindo suas águas, e as árvores vergavam, com suas copas quase arrastando no chão. Apavorados, os Nagôs se juntaram a Pai João e a Pai Zé Pedro, suplicando a misericórdia aos Céus. As palavras de Vô Agripino eram, agora, o lema daquele povo: coragem, firmeza, fé e amor – só Deus!

         Todos juntos, esperando. E foi quando a voz do Índio Estrangeiro, como uma melodia de paz, se fez ouvir:

         COMO SE TUDO PARASSE, É A HORA DE POMPÉIA, E DE TODOS, EM DEUS PAI TODO PODEROSO!

         Foi a Voz Direta! Todos ouviram e viram aqueles olhos verdes, incomparáveis, iluminando aquela escuridão.

         Sim, estariam juntos, mas, ó, meu Deus, em que plano, em que dimensão?

 

= FIM =